23/12/2011

O Tempo


O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; é um pomo exótico que não pode ser repartido, podendo entretanto prover igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nessa mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mãos de um artesão dia após dia; existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes da nossa casa, na água que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil dos nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que nos passam pela cabeça, no pó que dissemina, assim como em tudo que nos rodeia; rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele, devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é; por isso ninguém em nossa casa a de dar o passo mais largo que a perna: dar o passo mais largo qu a perna é o mesmo que suprimir o tempo necessário à nossa iniciativa; e ninguém em nossa casa a de colocar o carro a frente dos bois: colocar o carro a frente dos bois é o mesmo que retirar a quantidade de tempo que um empreendimento exige; e ninguém ainda em nossa casa há de começar nunca as coisas pelo teto: começar as coisas pelo teto é o mesmo que eliminar o tempo que se levaria para erguer os alicerces e as paredes de uma casa; aquele que exorbita no uso do tempo, precipitando-se de modo afoito, cheio de pressa e ansiedade, não será jamais recompensado, pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas, não bebendo do vinho quem esvazia num só gole a taça cheia; mas fica a salvo do malogro e livre da decepção quem alcançar aquele equilíbrio, é no manejo mágico de uma balança que está guardada toda a matemática dos sábios, num dos pratos a massa tosca, modelável, no outro, a quantidade de tempo a exigir de cada um o requinte do cálculo, o olhar pronto, a intervenção ágil ao mais sutil desnível; são sábias as mãos rudes do peixeiro pesando sua pesca de cheiro forte: firmes, controladas, arrancam de dois pratos pendentes, através do cálculo conciso, o repouso absoluto, a imobilidade e sua perfeição; só chega a este raro resultado aquele que não deixa que um tremor maligno tome conta de suas mãos, e nem que esse tremor suba corrompendo a santa força dos braços, e nem circule e se estenda pelas áreas limpas do corpo, e nem intumesça de pestilências a cabeça, cobrindo os olhos de alvoroço e muitas trevas; não é na bigorna que calçamos os estribos, nem é inflamável a fibra com que tecemos as tranças de nossas rédeas, pode responder a que parte vai quem monta, por que é célere, um potro xucro? O mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio, é contra ele que devemos esticar o arame das nossas cercas, e com as farpas de tantas fiadas tecer um crivo estreito, e sobre este crivo emaranhar uma sebe viva, cerrada e pujante, que divida e proteja a luz calma e clara da nossa casa, que cubra e esconda dos nossos olhos as trevas que ardem do outro lado; e nenhum entre nós há de transgredir esta divisa, nenhum entre nós há de estender sobre ela sequer a vista, nenhum entre nós há de cair jamais na fervura desta caldeira insana, onde uma química frívola tenta dssolver e recriar o tempo; não se profana impunemente ao tempo a substância que só ele pode empregar nas transformações, não lança contra ele o desafio quem não receba de volta o golpe implacável do seu castigo; ai de quem brinca com fogo: terá as mãos cheias de cinza; ai daquele que se deixa arrastar pelo calor de tanta chama: terá a insônia como estigma; ai daquele que deita as costas nas achas desta lenha escusa: há de purgar todos os dias; ai daquele que cair e nessa queda se largar: há de arder em carne viva; ai daquele que queima a garganta com tanto grito: será escutado por seus gemidos; ai daquele que se antecipa no processo das mudanças: terá as mãos cheias de sangue; ai daquele, mais lascivo, que tudo quer ver e sentir de um modo intenso: terá as mãos cheias de gesso, ou pó de osso, de um branco frio, ou quem sabe sepulcral, mas sempre a negação de tanta intensidade e tantas cores: acaba por nada ver, de tanto que quer ver; acaba por nada sentir, de tanto que quer sentir; acaba só por expiar, de tanto que quer viver; cuidem-se os apaixonados, afastando dos olhos a poeira ruiva que lhes turva a vista, arrancando dos ouvidos os escaravelhos que provocam turbilhões confusos, expurgando do humor das glândulas o visgo peçonhento e maldito; erguer uma cerca ou guardar simplesmente o corpo, são esses os artifícios que devemos usar para impedir que as trevas de um lado invadam e contaminem a luz do outro, afinal, que força tem o redemoinho que varre o chão e rodopia doidamente e ronda a casa feito fantasma, se não expomos nossos olhos à sua poeira? é através do recolhimento que escapamos ao perigo das paixões, mas ninguém no seu entendimento há de achar que devamos sempre cruzar os braços, pois em terras ociosas é que viceja a erva daninha: ninguém em nossa casa há de cruzar os braços quando existe a terra para lavrar, ninguém em nossa casa há de cruzar os braços quando existe a parede para erguer, ninguém ainda em nossa casa há de cruzar os braços quando existe o irmão para socorrer; caprichoso como uma criança, não se deve contudo retrair-se no trato do tempo, bastando que sejamos humildes e dóceis diante de sua vontade, abstendo-nos de agir quando ele exigir de nós a contemplação, e só agirmos quando ele exigir de nós a ação, que o tempo sabe ser bom, o tempo é largo, o tempo é grande, o tempo é generoso, o tempo é farto é sempre abundante em suas entregas: amaina nossas aflições, dilui a tensão dos preocupados, suspende a dor aos torturados, traz a luz aos que vivem nas trevas, o ânimo aos indiferentes, o conforto aos que se lamentam, a alegria aos homens tristes, o consolo aos desamparados, o relaxamento aos que se contorcem, a serenidade aos inquietos, o repouso aos sem sossego, a paz aos intranqüilos, a umidade às almas secas; satisfaz os apetites moderados, sacia a sede aos sedentos, a fome aos famintos, dá a seiva aos que necessitam dela, é capaz ainda de distrair a todos com seus brinquedos; em tudo ele nos atende, mas as dores da nossa vontade só chegarão ao santo alívio seguindo esta lei inexorável: a obediência absoluta à soberania incontestável do tempo, não se erguendo jamais o gesto neste culto raro; é através da paciência que nos purificamos, em águas mansas é que devemos nos banhar, encharcando nossos corpos de instantes apaziguados, fruindo religiosamente a embriaguez da espera no consumo sem descanso desse fruto universal, inesgotável, sorvendo até a exaustão o caldo contido em cada bago, pois só nesse exercício é que amadurecemos, construindo com disciplina a nossa própria imortalidade, forjando, se formos sábios, um paraíso de brandas fantasias onde teria sido um reino penoso de expectativas e suas dores(..)`
(Trecho do Filme Lavoura Arcaica – Baseado no Romance de Raduan Nassar)

13 comentários:

  1. Anônimo23:19

    QUE POST FANTÁSTICO, FANTÁSTICO E FANTÁSTICO!
    Amiga ALBA:
    Nem sei o que lhe dizer sobre o artigo. Absolutamente, lindo, sábio e fantástico!
    Favoritei e vou reler!
    Parabéns por mais um magnífico Post!
    Abraços,
    LISON.

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  2. O tempo é realmente um senhor às vezes bondoso à vezes cruel, que hora nos acalma hora nos tortura. Otimo texto.

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  3. Oi Alba, como sempre um texto de extremo bom gosto!
    Que se faça ao tempo o tempo de saber que sem tempo andamos no tempo do abandono!
    O tempo amiga, pode ser implacável ou suave como a pluma, só vai depender do que vamos fazer com o tempo que nos guia!
    Amei!
    Beijo enorme em seu coração

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  4. Minha querida Alba,
    Dizem os mais experientes que o tempo cura tudo.
    Se for verdade, não posso afirmar. Mas com certeza aplaca a dor das feridas abertas pelos desenganos.
    O filme Lavoura Arcaica, como o próprio nome traduz, é denso. Como denso e real é o seu texto.
    Como densa é você e tudo o que faz, imagino. Ainda bem!
    Então minha amiga, só me resta agradecer ao ano que finda a oportunidade de conhecê-la e compartilhar momentos que já se integraram á minha vida.
    Obrigada,
    Feliz Tudo em 2.012!
    Grande beijo.

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  5. Olááá queridíssima amiga !!!!

    Que saudades de vir lhe visitar !!!
    Demorei , mas retornei à blogosfera ! ai que dolorido é ficar longe deste meio que tanto me faz bem e dos amigos queridos :)
    Lindíssima postagem, suas escolhas como sempre parecem ser escolhidas a dedo para nos inspirar e emocionar, eu estava mesmo precisando ler algo assim, às vezes me sinto lutando contra o tempo como se fosse meu inimigo e assim, deixo de perceber as alegrias e o conforto que me proporciona... quando na verdade deveria deixar desta mania de pressa e de controle de lado... e este texto me trouxe esta reflexão tão relevante, obrigada !
    Obrigada também por tudo neste ano que passou , pela amizade sincera, pelo carinho, pelas conversas, pelo apoio, por tudo ! espero que continuemos estreitando estes laços e possamos quem sabe marcar aquele encontro né ;)
    Desejo que seu 2012 seja de alegrias, paz, amor, saúde e muitas realizações !!

    Beijos marciais e um abraço apertado da amiga que gosta muito de você ;)

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  6. @Ivan
    Muito grata pela visita e elogio ao artigo!
    Abraços!

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  7. @ Lison
    Obrigada caro amigo!
    Fico feliz que tenha favoritado o artigo!
    Agradeço sua presença e sábio comentário!
    Grande abraço!

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  8. @CesarAugusto
    Realmente, concordo, obrigada pela presença e valoroso comentário!
    Abraços

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  9. @Valéria Braz
    Minha querida amiga, adorei seu comentário,uma bela tradução deste tema!
    Muito obrigada pelo carinho da sua presença e amizade!
    Beijos com carinho!

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  10. @Beth Muniz
    Querida amiga me sinto lisonjeada com suas palavras.
    Realmente é um filme denso, quase um épico!
    Maravilhoso em todo seu contexto!
    Fico feliz com sua presença e excelente comentário!
    Beijos com carinho!

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  11. @Samanta
    Minha querida e grande amiga.
    Saudades mil...
    É sempre uma grande honra e alegria receber sua presença e elogio!
    Realmente o Tempo pode ser tanto nosso aliado como nosso pior inimigo!
    Não esqueci aquele encontro,e estávamos tão perto!
    Não vai faltar oportunidades....
    Querida amiga eu quem agradeço sua linda e verdadeira amizade.
    Mora no meu coração!
    Obrigada por tudo !
    Que em 2012 todos seus sonhos se realizem!
    Beijos e abraços com muito carinho!

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  12. Anônimo18:33

    Oi Alba - este texto e vídeo caíram como luva, hoje, pra mim... Sem dúvida, foram bem escolhidos por você... Seu blog é um capricho só... Parabéns amiga... Ser poeta não se limita a sensibilidade de escrever, mas também de se encantar e reconhecer a arte aonde quer que ela se encontre... inclusive nos textos de outros. Lindo "post".

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  13. @Elaine
    Olá amiga que bom que gostou!
    Fico feliz por sua presença e elogio a este espaço e os artigos publicados.
    Obrigada por prestigiar!
    Bjs

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