03/03/2011

O Mito de Sísifo


Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde a pedra caía de novo, em conseqüência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.
Diz-se ainda que, estando Sísifo quase a morrer, quis, imprudentemente, pôr à prova o amor de sua mulher. Ordenou-lhe que lançasse o seu corpo, sem sepultura, para o meio da praça pública. Sísifo encontrou-se nos infernos. E aí, irritado com uma obediência tão contrária ao amor humano, obteve de Plutão licença para voltar à terra e castigar a mulher. Mas, quando viu de novo o rosto deste mundo, sentiu inebriadamente a água e o sol, as pedras quentes e o mar, não quis regressar à sombra infernal. Os chamamentos, as cóleras e os avisos de nada serviram. Ainda viveu muitos anos diante da curva do golfo, do mar resplandecente e dos sorrisos da terra. Mercúrio veio pegar no audacioso pela gola e, roubando-o às alegrias, levou-o à força para os infernos, onde o seu rochedo já estava pronto.
Já todos compreenderam que Sísifo é o herói absurdo. É-o tanto pelas suas paixões como pelo seu tormento. O seu desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício indizível em que o seu ser se emprega em nada terminar. É o preço que é necessário pagar pelas paixões desta terra. Não nos dizem nada sobre Sísifo nos infernos. Os mitos são feitos para que a imaginação os anime. Neste, vê-se simplesmente todo o esforço de um corpo tenso, que se esforça por erguer a enorme pedra, rolá-la e ajudá-la a levar a cabo uma subida cem vezes recomeçada; vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de um ombro que recebe o choque dessa massa coberta de barro, de um pé que a escora, os braços que de novo empurram, a segurança bem humana de duas mãos cheias de terra. No termo desse longo esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a finalidade está atiginda. Sísifo vê então a pedra resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior de onde será preciso trazê-la de novo para os cimos. E desce outra vez à planície.
É durante este regresso, esta pausa, que Sísifo me interessa. Um rosto que sofre tão perto das pedras já é, ele próprio, pedra! Vejo esse homem descer outra vez, com um andar pesado mais igual, para o tormento cujo fim nunca conhecerá. Essa hora que é como uma respiração e que regressa com tanta certeza como a sua desgraça, essa hora é a da consciência. Em cada um desses instantes em que ele abandona os cumes e se enterra a pouco e pouco nos covis dos deuses, Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte do que o seu rochedo.
Se este mito é trágico, é porque o seu herói é consciente. Onde estaria, com efeito, a sua tortura se a cada passo a esperança de conseguir o ajudasse? O operário de hoje trabalha todos os dias da sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão da sua miserável condição: é nela que ele pensa durante a sua descida. A clarividência que devia fazer o seu tormento consome ao mesmo tempo a sua vitória. Não há destino que não se transceda pelo desprezo.
Se a descida se faz assim, em certos dias, na dor, pode também fazer-se na alegria. Esta palavra não é de mais. Ainda imagino Sísifo voltando para o seu rochedo, e a dor estava no começo. Quando as imagens da terra se apegam de mais à lembrança, quando o chamamento da felicidade se torna demasiado premente, acontece qua a tristeza se ergue no coração do homem: é a vitória do rochedo, é o próprio rochedo. O imenso infortúnio é pesado de mais para se poder carregar.
Mas as verdades esmagadoras morrem quando são reconhecidas.
Não descobrimos o absurdo sem nos sentirmos tentados a escrever um manual qualquer da felicidade. "O quê, por caminhos tão estreitos?..." Mas só há um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. Acontece também que o sentimento do absurdo nasça da felicidade. "Acho que tudo está bem", diz Édipo e essa frase é sagrada. Ressoa no universo altivo e limitado do homem. Ensina que nem tudo está, que nem tudo foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele entrara com a insatisfação e o gosto das dores inúteis. Faz do destino uma questão do homem, que deve ser tratado entre homens. Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside. O seu destino pertence-lhe. O seu rochedo é a sua coisa. Da mesma maneira, quando o homem absurdo contempla o seu tormento, faz calar todos os ídolos. No universo subtamente entregue ao seu silêncio, erguem-se as mil vozinhas maravilhosas da terra. Chamamentos inconscientes e secretos, convites de todos os rostos, são o reverso necessário e o preço da vitória. Não há sol sem sombra e é preciso conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e o seu esforço nunca mais cessará. Se há um destino pessoal, não há destino superior ou, pelo menos, só há um que ele julga fatal e desprezível. Quanto ao resto, ele sabe-se senhor dos seus dias. Nesse instante sutil em que o homem se volta para a sua vida, Sísifo, regressando ao seu rochedo, contempla essa seqüência de ações sem elo que se torna o seu destino, criado por ele, unido sob o olhar da sua memória, e selado em breve pela sua morte. Assim, persuadido da origem bem humana de tudo o que é humano, cego que deseja ver e que sabe que a noite não tem fim, está sempre em marcha. O rochedo ainda rola.
Deixo Sísifo no sopé da montanha! Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Esse universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.
Adaptação do texto de Albert Camus

15 comentários:

  1. Olá, Arte e Café!
    Sem sinhos e imaginação não somos nada!
    Bjs!
    Rike.

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  2. Olá Rike
    Obrigada pela visita e comentário.
    Beijos

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  3. Anônimo22:26

    Quantas vezes executamos trabalhos, e nos percebemos como se Sísifo: tendo que repetir a mesma coisa, sempre; e sem o resultado esperado. Acredito que a grande lição é não desistir nunca dos sonhos, da felicidade.
    Abraços!

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  4. Olá amigo Raimundo.
    Exatamente isto!
    Muitas vezes nos sentimos torturados pela rotina, querendo alcançar a perfeição.
    E como Sísifo, acabamos esquecendo da nossa humanidade, desejos, e principalmente de buscar a nossa felicidade!
    Muito obrigada pela presença e sábia analogia do seu comentário
    Grande abraço.

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  5. Olá minha querida Alba!
    Adorei, amiga, esse texto! Faz pensar... Sempre ouço dizerem que a rotina pode trazer alguma forma de contentamento... Não sei.
    O que mais me vem em mente agora é a satisfação de encerrar um dia, sentindo dignidade por ter concluído o trabalho, de forma honesta, sem sentir vergonha, sem prejudicar ninguém... O que muitos vêem como castigo, punição dos "deuses", vejo como bênção por poder contemplar a vida do alto da montanha, agradecida pela chance de estar entre os mortais, superando diariamente cada obstáculo de cabeça erguida. E pode parecer ironia, mas há felicidade nessa recompensa. A vida é divina e a pedra nossa de cada dia, chamando-nos à montanha, carregando-a nos ombros nos faz sentir heróis e heroínas não de um castigo, mas de uma graça concedida e que deve ser reverenciada... Por amor, amiga, pelos que amo, carregaria (e talvez carrego) essa pedra e só o saber de tê-los felizes, já me faz muito feliz... mesmo que os Deuses me chamassem infinitamente para o sopé da montanha.
    Grande beijo,
    Jackie

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  6. Querida amiga e guerreira:
    Jackie Fênix
    Como você maravilhosamente argumentou:
    A vida é uma batalha contínua.
    Esta grande pedra representando nosso sacrifício diário, talvez apenas seja nossos deveres para com a nossa consciência!
    Sendo que, se este dito “sacrifício” é estarmos satisfeitos e em paz com a nossa mente e espírito.
    Então, em prol das nobres causas, estas que nos motivam, não haverá deuses capazes de nos desanimar!
    Muito obrigada por engrandecer este post com seu rico e sábio comentário.
    Beijos Mil

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  7. opaaaaaaaaa abram canja q oto chegando
    bem oso como o sisifo a diferença
    é q naum empuro pedras para vir ate aki
    sou subtamente envolvida por um ima kkkkkk
    eu num podia deixar de fazer graça hehe

    bem quantos muitas e muitas vezes
    ate eu um dia ao deixar rolar a primeira pedra
    me entristezi desanimei
    depois olhando a "pedra" incarando ela feio
    percebi q ela podia ser grande percistente mas parecia monotona seria ridiculo desistir assim num é mesmo
    acho q num importa quantas pedras rolem
    qunatas vezes o mau nos atraia
    basta cada um ter certeza e conhecer sua força interior ate pork todo mundo sabe
    q desistir é coisa para os fracos
    entaummmmmmmmm vamo q vamo

    bjimmmmmmmmmmmm minha rica flor Alba

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  8. Sei lá, vamos vê-lo como um rebelde sem causa ...ou não.

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  9. Olá minha querida flor Juci
    É por aí mesmo, quando persistimos em nossos sonhos e objetivos, não existem fardos para desestimular-nos.
    A recompensa pode se simplesmente a nossa felicidade!
    Muito obrigada, minha rica flor do sul
    Beijos mil

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  10. Olá minha queridíssima amiga !!!

    Fiquei encantada com este texto, aliás adoro estas histórias, sempre descrevem de uma maneira perfeita e intrigante as situações humanas.
    Creio que carregar nossa pedra rochedo acima, durante nossas vidas, sem a certeza de que um dia isso cessará, faz parte da nossa jornada por diversas questões, tanto sociais, quanto de sobrevivência e também pela necessidade de aprendizado...
    É como se estivéssemos sendo testados, até quanto dura nossos desejos, sonhos e anseios humanos ?
    Pela nossa própria natureza, dura sempre para a maioria de nós, estamos constantemente lutando pelos momentos entre uma subida e outra para que a alegria se instale, algumas vezes o desânimo chega, ficamos até "empedrecidos", mas quando a consciência e nossa essência fala mais alto e transborda, lá vamos nós novamente !
    Por mais que a subida seja difícil , é sempre gratificante saber que temos força para fazê-la, e com o coração e a mente abertos, é possível ver nesta suposta maldição, uma oportunidade de crescimento.
    Tudo é uma questão de visão e interpretação :)
    Adorei, muito lindo e intenso !
    Mil beijocas marciais !!

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  11. Olá minha querida amiga Sam!
    E falando em questão de interpretação a sua foi excelente!
    Esta estória da mitologia nos remete a refletir sobras nossas lutas.
    Muitas vezes podemos atribuir nossos desafios como uma tortura existencial.
    Creio que cada um de nós, tem as nossas pedras diárias para carregar.
    Uns carregam umas mais leves, outros carregam grandes rochas.
    Mas é como você disse.
    Somos humanos, por isso somos seres complexos em todos os nossos desejos e aspirações.
    Muito obrigada por completar a idéia deste tema com sábio e ilustre comentário.
    Mil beijos Marciais!

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  12. Olá Joselito
    Tudo depende do ponto de vista de cada um...ou não?
    Amigo obrigada pela participação.
    Beijos

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  13. É interessante essa visão de Sisifo. Consciente de seu eterno tormento. Consciência que falta em muitas pessoas que simplesmente se amarram a uma rotina sem querer mais, sem buscar uma maior realização. Mas é importante lembrar também que se ele agora enfrenta a tormentos foi porque viveu cheio de paixão fazendo tudo que teve ao seu alcance para aproveitar a vida, até para voltar a vida. Traço que a maioria das pessoas não carrega deixando-se levar apenas pela prisão do dia a dia, e o pior sem consciência disso.
    GRANDE abraço Alba,

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  14. Olá amigo Ademar.
    Como sempre, você enriquece o tema, com grande e sábia interpretação!
    Neste caso, tudo indica que a penalização sofrida pelo mito de Sísifo, foi dada por ele mesmo.
    Devido ao arrependimento de seus prazeres e paixões levados ao extremo.
    A pedra será uma condenação, e ao mesmo tempo uma absolvição da consciência deste mitológico herói do absurdo.
    Muito obrigada pelo brilhante comentário!
    Beijos

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  15. Qual é o significado desta frase: «Encontramos sempre o nosso fardo. mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos»

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